Teologia do Corpo

Por Talis Pagot

Teologia do Corpo é o nome dado pelo Papa João Paulo II como título ao tema tratado em suas primeiras catequeses, ministradas entre 1979 e 1984, durante as audiências gerais de quartas-feiras, nas quais o Santo Padre, seguindo um costume iniciado por Pio IX por volta de 1870, ensinava algum aspecto doutrinário. João Paulo II foi o primeiro Papa a apresentar uma catequese sistemática, sendo desenvolvida ao longo destes anos. Sabemos hoje, que o cardeal Wojtyla tinha escrito um livro com o título “Homem e Mulher o Criou”, porém sua publicação foi interrompida devido a sua eleição como Papa em outubro de 1978. Sendo assim o conteúdo deste livro serviu de base para as primeiras catequeses de João Paulo II.[1]

As catequeses referentes à Teologia do Corpo abordaram vários aspectos do amor humano, tais como: “a relação do homem e da mulher, o significado esponsal do corpo humano, a natureza e missão da família, o matrimônio, o celibato, a luta espiritual do coração do homem, a linguagem profética do corpo humano, o amor conjugal, entre outros.”[2]

Teologia do Corpo nasce da Encarnação do Verbo, e, justamente, a espiritualidade cristã precisa ser vivida na carne, ou seja, no corpo. Uma espiritualidade não-encarnada não é uma autêntica espiritualidade cristã. Adolphe Geschè, teólogo francês, nos diz que o corpo é caminho de Deus, de Deus para o homem e do homem para Deus. Caminho aberto pela Encarnação do Verbo, que revela o sentido dos outros corpos, conforme aponta West,C. Deus assume um corpo humano e “o corpo de Cristo, acima de tudo proclama e revela o Evangelho do corpo”.[3]

No que se refere ao ser humano pessoa, o Catecismo é claro em dizer que este é uma unidade corpo e alma, que não pode ser separada, sem dualismos, e a teologia do corpo vem justamente ressaltar isto, mostrando a realidade sacramental do corpo humano. O corpo é sacramento, não no mesmo sentido dos sete sacramentos definidos pelo Concílio Tridentino, que determinou sete, nem mais, nem menos, mas o corpo traz em si uma realidade sacramental. Para compreendermos melhor vamos ao conceito básico: sacramento é o sinal visível da graça invisível. Desse modo vemos que o corpo humano tem algo a nos dizer de Deus, pois é o próprio Deus que nos revela a realidade do que somos – “façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança”.  “O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir, para a realidade visível do mundo, o mistério oculto desde a eternidade, em Deus, e assim ser sinal d’Ele”.[4]

João Paulo II faz uma análise do diálogo de Jesus com os fariseus onde o Mestre propõe uma mudança de ethos, ou seja, uma mudança interior traduzida em atos e não de modo contrário como muitas vezes expressavam os fariseus. Para essa mudança Jesus sugere o olhar para o coração (cf. Mt 5, 27-28). Além do coração, Jesus aponta para aquilo que chama de princípio (cf. Mt 19, 3ss e Mt 10, 2ss), que se refere aquela realidade encontrada nos três primeiros capítulos do livro do Gênesis.

     O princípio revela as experiências fundamentais do ser humano e que estão na base da Teologia do Corpo de João Paulo II. Em Gn 1, 26-27 encontramos a primeira narrativa da criação onde Deus cria o ser humano Sua imagem e semelhança. Gênesis 2 e 3, segundo relato da criação, mais antigo que o primeiro, que nos mostra a relação entre a inocência original, a felicidade do ser humano e a primeira queda. Este segundo relato da criação revela as experiências fundamentais do desenvolvimento do ser humano criado imagem de Deus.

     Antes da queda o ser humano vivia num estado de inocência original onde tudo era percebido ao modo da percepção de Deus. Conseguia-se experienciar as coisas em sua plenitude. Neste estado o homem vive as seguintes experiências: a solidão original, a unidade original, a nudez original e a esponsalidade do corpo.

     Em primeiro lugar o homem se percebe só no Édem (Gn 2,18). Em meio a todas as criaturas (reino animal), através de seu corpo, o homem se sente só, necessitado de alguém que lhe corresponda. Começa aqui o seu processo de autoconhecimento, autodeterminação e autotranscendência. A segunda realidade é da unidade original, em que ao homem, que já começou a descobrir-se “ser corpo” no início de seu processo de autodeterminação, lhe é acrescentada a sexualidade, masculino e feminino, que lhe permite avançar neste processo de autodeterminação e perceber que foi feito para a comunhão e não para a solidão. A terceira realidade é a nudez original, que é fundamental para compreensão integral do ser humano, onde o homem consegue ver o seu semelhante em toda a realidade e verdade daquilo que ele é, o que se torna impossível a partir do pecado, com o surgimento da vergonha (Gn 2,25). A visibilidade corporal faz com que homem e mulher, desde o princípio, se comuniquem entre si segundo aquela comunhão de pessoas querida pelo Criador para eles. Por fim, encontramos a partir das três realidades anteriores o significado esponsal do corpo, o que João Paulo II chama de máximo estado de graça dos corpos.
O significado esponsal do corpo no mistério da criação atesta que a entrega-doação que brota do amor atingiu a consciência original do homem.[5]

     Dessas realidades do princípio, gostaria de me alongar um pouco mais na nudez original. É evidente que não podemos separá-las, pois formam um todo no ser humano pessoa descrito no Édem, mas quero chamar atenção para o olhar interior, que João Paulo II descreve com maestria. Nas palavras do Papa “a nudez significa o bem original da visão divina”, o que quer dizer que na expressão “os dois estavam nus, o homem e a mulher, mas não se envergonhavam” (Gm 2,25), o homem podia olhar para a mulher, e a mulher para o homem, mais profundamente do que com o simples sentido da visão, mas enxergar o outro ser humano na totalidade e verdade daquilo que ele é. Olhando a verdade do ser humano, encontramos o Dom fundamental, o próprio Deus, do qual o homem foi feito imagem e semelhança, e que deve revelar ao outro essa verdade. E mais, na nudez original, sem a vergonha, homem e mulher, “comunicam” um ao outro, “na recíproca complementaridade, precisamente, porque masculino e feminino” e “’comunicam’ com base naquela comunhão de pessoas, na qual, através da masculinidade e feminilidade, eles se tornam dom recíproco um para o outro.”[6]

     Christopher West, um dos maiores divulgadores da Teologia do Corpo de João Paulo II, publicou, em fevereiro de 2010, um artigo comentando o filme Avatar, onde os Navi, habitantes de Pandora, cumprimentavam-se com as palavras “eu vejo você”, o que, para quem assistiu ao filme, pôde perceber que com estas palavras os personagens expressavam um olhar para a totalidade da pessoa, principalmente para a realidade interior, o que o Santo Padre tenta nos mostrar quando fala da nudez original.

     O estado de graça do princípio é interrompido pela queda original, fruto do livre arbítrio do ser humano diante da árvore do conhecimento do bem e do mal. Fecham-se as “portas do paraíso” e o homem fica sob o jugo do pecado. Tal realidade é revertida com o mistério pascal de Cristo que novamente nos abre acesso aquele princípio, não como possibilidade de voltar a ele, mas a partir dele cada dia lutar para vencer o pecado e a concupiscência (inclinação para o pecado), e nos configurarmos a Cristo, estabelecendo assim uma ligação profunda com aquele estado de inocência, capacitando-nos a revelar Deus para o outro e também descobri-lo no outro.

     Por fim, gostaria de adaptar uma frase de Robert Maguire que fala a respeito do espaço litúrgico da celebração, mas que trago aqui para a realidade do corpo humano: “O corpo fala. Fala de significados, de valores, e continuará a falar. E se falar de valores errados, continuará sempre a destruir.”
[7] O corpo é uma realidade física e espiritual, que deve abrir-se ao Espírito de Deus e com isso ser canal de santidade para a vida da própria pessoa e para o mundo, como testemunha do amor de Deus.




[1] Cf. WEST, C. Theology of the body explained. Boston:Pauline, 2007, p. 9-10.
[3] WEST, C. Theology of the body explained. Boston:Pauline, 2007, p. 15.
[4] TOB 19, 4.
[6] TOB 13,1.
[7] Adaptado da frase original:“Se estás para construir uma igreja, estás para criar uma coisa que fala. Falará de significados, de valores, e continuará a falar. E se falar de valores errados continuará sempre a destruir” (Robert Maguire)


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